O aquecimento global ameaça complicar a vida dos Brachycephalus nas próximas décadas. Mesmo protegidas por unidades de conservação, várias populações poderão ser levadas à beira da extinção pela elevação da temperatura e as mudanças climáticas associadas a ela. Uma ameaça da qual nem o Estado nem a ciência têm como protegê-los.
Os "bráquis" de altitude (15 das 18 espécies conhecidas do gênero) dependem de condições muito restritas de umidade e temperatura para sobreviver. Suas áreas de ocorrência estão diretamente relacionadas à linha de neblina nas montanhas, acima da qual, mesmo nos meses de pouca chuva, há umidade suficiente no ambiente para mantê-los vivos no chão da mata.
"Eles precisam do chão da floresta muito úmido para se reproduzir. Dependem de água, não na forma de um riacho, mas de umidade no solo e vapor d'água na atmosfera", explica Célio Haddad, professor titular do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Unesp Rio Claro, um dos maiores especialistas em anfíbios do País.
O problema é que, com a elevação da temperatura, a linha de neblina também tende a subir. E para espécies que só sobrevivem acima dessa linha, isso pode ser um problema sério.
Quando a coisa esquentar, animais e plantas que vivem em altitudes mais baixas poderão migrar para altitudes maiores em busca de temperaturas mais amenas. Os Brachycephalus, não necessariamente. O isolamento em topos de morro, que mantém esses sapinhos relativamente bem protegidos da ocupação humana, poderá se transformar num cárcere ecológico potencialmente letal.
"Vai chegar uma hora que esses bichos vão ficar literalmente encurralados", diz o geógrafo João Paulo de Cortes, também da Unesp em Rio Claro. Um trabalho de modelagem climática desenvolvido por ele, em parceria com a equipe de Haddad, indica que o volume de áreas adequadas para os Brachycephalus em toda a Mata Atlântica poderá cair pela metade até 2050.
A situação mais grave, segundo Cortes, seria a do Brachycephalus alipioi, cuja distribuição, até onde se sabe, está restrita a dois pontos da Serra de Santa Teresa, no Espírito Santo, que estão fora de unidades de conservação e serão mais afetadas pelas mudanças climáticas. No Estado de São Paulo, as populações mais afetadas seriam as de regiões mais interioranas, onde a incidência de nebulosidade oceânica é menor.
"Algumas populações sofrerão reduções drásticas; outras poderão ser completamente exterminadas", avalia Haddad. "E olha que estou sendo benevolente." Isso porque a adequabilidade do hábitat não depende apenas da altitude, mas de uma série de condições climáticas, biológicas e topográficas que podem variar de morro para morro. "Se der para subir, o bicho vai subir. Mas quem garante que mais acima as condições também serão boas? E se o topo da montanha for de rocha exposta?"
Relações familiares. As três espécies de bráquis que não são restritas a florestas de altitude têm um papel incerto na história evolutiva do grupo. Brachycephalus didactylus, Brachycephalus hermogenesi e Brachycephalus pulex costumavam ser classificados como outro gênero, chamado Psyllophryne. Em 2002, porém, foram reclassificados como Brachycephalus, após uma análise morfológica mais refinada revelar que os dois grupos compartilhavam um ossinho característico, chamado omosternum. É como se espécies consideradas primas passassem a ser classificadas como irmãs, filhas dos mesmos pais.
A dúvida é: Quem é a irmã mais velha?
Os sapos das 3 espécies "novas" e das 15 "originais" têm algumas coisas em comum, como tamanho em miniatura e anatomia esquelética semelhante. Mas também têm muitas coisas diferentes. Tanto na morfologia quanto na ecologia, a maneira como se comportam no ambiente. Os ex-Psyllophrynes não são coloridos, têm menor grau de ossificação, pulam com mais frequência e muito mais longe (são popularmente conhecidos como "sapos-pulga") e ocupam uma variedade de ambientes muito maior, desde o nível do mar até 1,2 mil metros de altitude.
Todavia, se são todas espécies do mesmo gênero, qual é a relação evolutiva entre elas? Os ex-Psyllophrynes podem representar um grupo mais primitivo, de distribuição mais ampla, dentro do qual algumas populações se isolaram no topo dos morros e deram origem a novas espécies. Ou o contrário. Talvez eles sejam um grupo derivado das espécies de topo de morro, que conseguiu se adaptar a condições ambientais mais diversificadas, em altitudes mais baixas.
"As duas hipóteses são plausíveis", afirma Thaís Condez, aluna de doutorado de Haddad. Só com mais dados genéticos de diferentes espécies será possível solucionar o mistério.
Mas é quase certo que todos os Brachycephalus têm um ancestral comum, que, em algum ponto do passado, encontrou condições ambientais adequadas para se "esparramar" por toda a Mata Atlântica. Além de São Paulo, há espécies registradas no Paraná, Minas, Rio, Espírito Santo e Bahia.
As pesquisas de Haddad e sua equipe com os bráquis estão inseridas em um projeto temático sobre especiação de anuros (sapos, rãs e pererecas) em ambientes de altitude, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), com apoio de bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). "Esses bichos são muito emblemáticos desse processo", diz Haddad.
Como os Brachycephalus não sobrevivem abaixo da linha de neblina, os topos de morro funcionam como ilhas de umidade num mar de floresta, o que favorece o isolamento genético das populações e, consequentemente, a formação de novas espécies (especiação). Assim, populações de montanhas relativamente próximas geograficamente podem ser muito diferentes umas das outras.
Fonte: O Estado de S.Paulo